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Matéria Publicada em: 27/06/2017

APETITE CHINÊS POR CARNE MUDA ROTA DA PLANTAÇÃO DE SOJA PELO MUNDO



A nova paisagem se deve a agricultores como Eric Moberg, cuja semeadeira pneumática plantou milhares de hectares de soja no segundo trimestre. "Há quatro anos, não cultivávamos soja. Agora ela ocupa quase um terço de nossas terras.

Os campos em torno da cidade de Mohall, no Dakota do Norte, até recentemente eram uma colagem de linho azul, girassóis de um amarelo intenso e trigo da cor do âmbar. Mas hoje, muitos deles mostram um tom verde uniforme, no pico do crescimento da safra de verão deste ano. A nova paisagem se deve a agricultores como Eric Moberg, cuja semeadeira pneumática plantou milhares de hectares de soja no segundo trimestre. "Há quatro anos, não cultivávamos soja. Agora ela ocupa quase um terço de nossas terras".

O território no qual ele trabalha, uma planície exposta ao vento na divisa entre os Estados Unidos e o Canadá, representa uma fronteira no suprimento mundial de alimentos. A Ásia emergente está comendo mais carne de frango e de porco, e a soja que confere músculos às aves e suínos se espalhou pelas fazendas do planeta em ritmo mais rápido que o de qualquer outra safra, cobrindo área 28% maior do que a ocupada uma década atrás. Este ano pode ser o ponto de inflexão. Com o plantio quase completo, é provável que a soja tenha superado o milho como safra mais plantada dos Estados Unidos, acreditam os analistas. A soja avançou profundamente pelo interior do cerrado brasileiro, pelos pampas argentinos e pelo coração rural dos Estados Unidos. As safras vêm sendo grandes o suficiente para causar efeito mensurável nas economias do Brasil e dos Estados Unidos, no ano passado. Nos próximos 10 anos, a soja terá área plantada superior a um bilhão de hectares (10 milhões de quilômetros quadrados) em todo o mundo, com expansão maior que a cevada, milho, arroz, sorgo e trigo, de acordo com projeções do Departamento da Agricultura dos Estados Unidos.

O triunfo da soja depende da China. As importações da safra pelo país triplicaram nos 10 últimos anos, para um total estimado em 93 milhões de toneladas no ano que vem, o equivalente a 66 quilos de soja por habitante/ano, ou cinco graneleiros ao dia. Delegados do Ministério do Comércio chinês visitarão o Estado norte-americano de Iowa, rico em soja, no mês que vem, para assinar um acordo que pode incluir uma compra recorde, de acordo com o Conselho de Exportação de Soja dos Estados Unidos.

Os embarques aumentaram mesmo em um período de oscilação na demanda chinesa por commodities industriais como o minério de ferro e o cobre. "O ritmo de crescimento vem sendo fenomenal, e continuado", diz Gert-Jan van den Akker, diretor de cadeia de suprimento agrícola na Cargill, uma companhia de comércio de commodities alimentícias.

A demanda mundial por produtos básicos como o trigo vem crescendo em paralelo ao crescimento populacional de 1% ao ano. O consumo de soja vem se acelerando ao ritmo de 5% anuais —-superando até mesmo o do milho, o maior beneficiário do agressivo programa norte-americano de desenvolvimento de biocombustíveis.

Qualquer pessoa que faça compras no supermercado sabe que a soja é um produto versátil, fonte de tofu e de óleo de cozinha. O agribusiness transformou seus grãos em bens como tinta, carpetes e biodiesel. Mas a imensa popularidade da planta da soja se deve ao seu teor de proteína sem paralelos. Quando moída, cerca de 80% da soja se converte em farelo, e as galinhas, porcos e peixes alimentados com ele engordam rápido.

"É a única proteína real que tem todos os aminoácidos essenciais para uma ração completa. Essa é a magia da soja", dize Soren Schroder, presidente-executivo da Bunge, maior processadora mundial de sementes oleaginosas.

O farelo de soja sustenta os setores de carne nos Estados Unidos, Brasil, Europa e no resto do planeta. Mercados emergentes no Sudeste Asiático e no Oriente Médio devem elevar ainda mais o consumo do produto, dizem executivos. Mas a transição na dieta da China vem sendo o principal propulsor de crescimento. O Departamento da Agricultura dos Estados Unidos projeta que a China venha a importar 121 milhões de toneladas de soja ao ano, dentro de uma década, mais de 30% acima do total atual.

CARNE TODO DIA

Em 1989, quando a primeira filial do Kentucky Fried Chicken em Xangai foi aberta no local de um antigo clube para cavalheiros britânicos no Bund, o distrito comercial da cidade, à beira-rio, o consumidor chinês médio comia 20 quilos de carne ao ano. Depois de quase três décadas de avanço na renda pessoal, o consumo per capita de carne ultrapassou os 50 quilos anuais.

O KFC agora opera mais de cinco mil lojas na China e abrirá centenas de novas unidades no país este ano. O restaurante do Bund se mudou para um endereço menos fino, mas em uma visita vespertina recente à nova casa não havia um assento vazio, e os fregueses estavam todos ocupados devorando sanduíches e porções de carne de frango. "Tudo vende bem aqui", disse o garçom Wang Shuai.

Um fator que reforça a tendência é o crescimento da população urbana chinesa, da ordem de 20 milhões de pessoas ao ano, um ritmo superior ao do crescimento médio da China, porque os moradores de cidades tendem a comer mais carne.

"Comemos carne todos os dias. É quase um exagero", diz Ahmat Barat, 41, taxista em Urumqi, a capital da região de Xinjiang, no noroeste da China. "Quando eu era menino, não tínhamos geladeira em casa e só comíamos carne uma ou duas vezes por semana". Para satisfazer esse apetite, o setor de criação de animais da China emergiu de pequenas operações "caseiras", nas quais porcos eram alimentados com sobras de comida, para se tornar uma operação industrial. Dados do Ministério da Agricultura chinês citados por diplomatas norte-americanos demonstram que as granjas que criam galinhas em larga escala cresceram de dois terços para mais de 90% das unidades do setor na China, e que a criação de porcos em larga escala avançou de 16% do setor em 2005 para um total estimado em 50% em 2015. A Cargill, por exemplo, construiu um centro de criação de frangos de US$ 360 milhões na província de Anhui, capaz de processar 65 milhões de galinhas por ano.

Companhias criadas para fornecer alimentação a esses animais geraram fortunas para magnatas chineses como Bao Hongxing, presidente-executivo do Twins Group, o maior produtor chinês de ração suína, cujo patrimônio é estimado em US$ 1,8 bilhão. Refletindo a alta nas vendas, o contrato futuro de farelo de soja da bolsa de commodities da cidade de Dalian se tornou o instrumento futuro mais negociado nos mercados mundiais de futuros agrícolas.

A China pode ser a terra natal da soja, mas as safras do país raramente ultrapassam os 15 milhões de toneladas anuais. O custo de produção da safra doméstica é mais alto que o da soja importada, e por isso a demanda é sustentada primordialmente por uma proibição de uso de soja geneticamente modificada em alimentos de consumo diário.

A restrição não se aplica à soja usada para ração animal e para a produção de óleo de cozinha, e por isso os insumos usados nessas atividades hoje vêm principalmente de safras estrangeiras com traços alterados por bioengenharia para, por exemplo, promover maior resistência a pesticidas. Os líderes da China abriram as portas à importação de soja embora tenham mantido a política de autossuficiência na produção de cereais de consumo básico.

Em resposta, as empresas estão construindo uma cadeia de produção internacional cada vez mais elaborada para a soja. A Cargill, em parceria com o grupo chinês New Hope, inaugurou em abril uma usina de moagem de soja de US$ 100 milhões, em um porto perto de Pequim. Do lado oposto do Pacífico, a United Grain recentemente investiu US$ 80 milhões para transportar soja e milho por meio de seu terminal de exportação no rio Colúmbia, no Estado norte-americano de Washington.

"Enviamos cinco navios por mês transportando exclusivamente soja", e eles "tipicamente vão para a China", diz Brent Roberts, da United Grains, subsidiária da Mitsui, do Japão. Mais de 1,5 mil quilômetros ao leste, em Lansford, Dakota do Norte, a cooperativa de grãos CHS SunPrairie, presidida por Moberg, está construindo um ramal ferroviário que permitirá que trens transportem a safra local sem paradas, direto para a costa do Pacífico. "Sei que boa parte da carga é embarcada lá e parte direto para a China", disse Moberg, com os jeans enlameados depois de um dia de trabalho na plantação.

Os agricultores norte-americanos estão muito cientes da importância do comércio com a China. Depois que Donald Trump foi eleito presidente com uma plataforma protecionista, o "Global Times", um jornal estatal chinês em Pequim, alertou que "as importações de soja e milho dos Estados Unidos serão suspensas" caso o novo governo norte-americano cumpra sua ameaça de impor tarifas punitivas às importações chinesas.

O relacionamento entre Washington e Pequim se provou mais amistoso do que era esperado, até o momento, e os executivos do setor, dos dois lados do Pacífico, não mostram sinais de alarme. O embaixador de Trump à China é Terry Branstad, antigo governador do Iowa, um Estado agrícola. "Não vejo como eles poderiam deixar de comprar nossos produtos", disse Dusty Lodoen, agricultor em Westhope, Dakota do Norte, que visitou a China como parte de uma delegação norte-americana.

Os agricultores norte-americanos vêm perdendo mercado para rivais da América do Sul, no entanto. No ano passado, o Brasil supriu mais de metade das importações de soja da China, os Estados Unidos 35% e a Argentina 10%, de acordo com o adido agrícola dos Estados Unidos em Pequim. A Conab, agência brasileira de estatísticas agrícolas, diz que a safra do país este ano foi de vigorosos 114 milhões de toneladas.

IMPACTO AMBIENTAL

A soja transformou o cerrado em torno de Sorriso, uma cidade no Estado do Mato Grosso cuja população disparou de 17 mil para 83 mil habitantes, em 25 anos. "A soja é o carro-chefe, o motor de Sorriso. Nossos agricultores são verdadeiros heróis nacionais", diz o prefeito Ari Laftin.

Sorriso só se estabeleceu como cidade em 1986, cerca de uma década depois que "colonos", em sua maioria descendentes de italianos, transformaram as terras brutas em fazendas como parte de um projeto de colonização da Amazônia. "Não havia ruas asfaltadas, telefones, eletricidade", recorda Rodrigo Pozzobon, o delegado local da Aprosoja, uma cooperativa de plantadores de soja.

Agora, agricultores fazem jogging no parque, sob um sol escaldante, tocam mensagens de WhatsApp com o ministro da Agricultura brasileiro Blairo Maggi - ele mesmo um bilionário da soja-, dirigem Land Rovers, usam relógios de marca, e desafiam a pior recessão na história do país. De acordo com o IBGE, a renda per capita de Sorriso dobrou, de R$ 27.569 em 2010 para R$ 57.087 no ano passado, e é uma das mais altas do Brasil.

Na safra de 2017, os 2,23 milhões de toneladas produzidos pelos agricultores de Sorriso fizeram da cidade a maior produtora do Brasil. "Nosso maior mercado é a China", diz Pozzobon. Pedro Dejneka, da consultoria MD Commodities, diz que Sorriso e a cidade vizinha, Sinop, costumavam representar a ponta norte do setor da soja. Agora são a "fronteira sul", ele diz. E a despeito do excedente de grãos em todo o planeta, a área cultivada da soja deve se expandir dramaticamente no Brasil e Argentina, nos próximos 10 anos, o que inclui a ocupação de "terras não cultivadas", de acordo com o Departamento da Agricultura dos Estados Unidos.

Isso causa consternação quanto ao cerrado, a área que absorverá a maior parte das novas plantações no Brasil. Embora a Amazônia tenha sido protegida contra mais desmatamento para produção de soja por uma "moratória da soja" assinada pelo setor agrícola e o governo em 2006, o pacto não cobre o cerrado. Ativistas ecológicos vêm pressionando o Brasil para incluir o cerrado na moratória, e também pressionam tradings internacionais como a Bunge e a Cargill para que assumam o compromisso de não comprar soja produzida em terras recentemente convertidas ao uso agrícola.

Glenn Hurowitz, do grupo ambientalista Mighty, diz que embora gado, papel e óleo de palma sejam forças de desflorestamento, "vemos oportunidade imediata de reduzir dramaticamente o desflorestamento para produção de soja devido à natureza internacional do mercado da soja". A Bunge e a Cargill apoiam a moratória e se comprometeram a eliminar produtos de áreas desflorestadas de suas cadeias de suprimento. As empresas, ONGs e agricultores estão discutindo se a soja deve ou não ser incluída nas restrições. "A definição do que está e não está proibido causa muito debate, como você pode imaginar", disse Schroder, da Bunge.
Os preços recentes da soja estão bem abaixo dos picos de alguns anos atrás, graças a uma sucessão de boas safras na América do Norte e na América do Sul. Mas isso não reduziu o plantio de novas áreas.

"Por anos e anos", disse o agricultor norte-americano Guy Solemsaas, entrevistado durante uma visita a um ocupado comerciante de sementes de Mohall, "a demanda vem sendo simplesmente incrível".

MUDANÇA NO CLIMA

A Dakota do Norte, um Estado remoto e desprovido de acesso ao mar, é o mais frio da região contígua dos Estados Unidos. Isso historicamente o tornava inapropriado para o plantio da soja, que prospera em condições quentes e de alta umidade. Mas a tecnologia, as forças de mercado e a mudança do clima alteraram esse panorama.

Companhias de sementes como a Monsanto criaram variedades que resistem à temporada curta de crescimento da região e aproveitam as longas horas de luz solar durante o verão. A ascensão da China como destinatária de soja favorece locais como a Dakota do Norte, relativamente próximo dos portos da costa do Pacífico por meio das ferrovias BNSF e Canadian Pacific.

"Estamos a apenas três semanas da China", diz Nancy Johnson, da Associação de Plantadores de Soja da Dakota do Norte. O Estado também se tornou mais chuvoso, apesar da seca deste ano. Isso elevou o rendimento das safras e reabasteceu de água seus atoleiros glaciais, gerando um habitat melhor para os pássaros. Os ataques de pássaros a plantações de girassóis levaram os agricultores a optar pela soja, cujas sementes ficam protegidas por uma casca, como semente oleaginosa de cultivo mais seguro.

A Dakota do Norte vem passando por aquecimento mais rápido do que o de qualquer outro Estado norte-americano, diz Adnan Akyüz, o climatologista do Estado. "O clima está dando mais oportunidade ao agricultor da Dakota do Norte para sair de sua zona de conforto e começar a plantar safras usualmente plantadas mais ao sul". Executivos locais de agricultura concordam, ainda que divirjam sobre a causa. "A área de geada está recuando mais e mais, agora", diz Jeff Kittell, diretor comercial de um silo da Borger Ag & Energy em Russell. "Não sou grande fã do aquecimento global. Mas é o que temos. E está resultando em maior cultivo de soja".

Fonte: Negretto

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